
O Saudosismo e a poesia de Teixeira de Pascoaes
O texto analisa poemas de Teixeira de Pascoaes , estabelecendo relações com o movimento português saudosista.
O SAUDOSISMO E A POESIA DE TEIXEIRA DE PASCOAES
Charles Odevan Xavier
SAUDOSISMO
Movimento literário, essencialmente poético, inserido na atividade da sociedade portuense Renascença Portuguesa, fundada por Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra, a qual teve como veículo de difusão a revista A Águia.
O Saudosismo, strictu senso, é uma atitude perante a vida que, segundo Pascoaes e muitos outros, constitui feição típica da literatura portuguesa, tanto erudita como popular, logo traço definidor da <>. Pascoaes atribui à saudade amplas dimensões e profunda significação, chegando a vê-la como um princípio formador do ressurgimento pátrio. A atmosfera mental portuguesa estava impregnada do idealismo e do nacionalismo tradicionalista que se haviam desenhado na última década do séc. XIX. O propósito da <> foi o de congregar espíritos animados do desejo de, agindo no plano das artes, promover a reconstrução do país, minado pelas dissenções políticas que a instituição da República não viera sanar.
Pascoaes vê a pátria do seguinte modo: <<É preciso, portanto, chamar a nossa Raça desperta à sua própria realidade essencial, ao sentido da sua própria vida, para que ela saiba quem é e o que deseja. E então poderá realizar a sua obra de perfeição social, de amor e de justiça, e poderá gritar entre os povos: Renasci!>>. Jacinto do Prado Coelho percebe nessa e em outras afirmações, que Pascoaes preconiza um Portugal agrário, uma organização municipalista e uma igreja independente. Mais tarde, os outros colaboradores de A Águia (Antonio Sergio e Raul Proença) discordarão de Pascoaes pelo tom xenófobo, provinciano, passadista, ilógico, utópico do seu ufanismo lusitano, segundo eles, incompatível com o moderno espírito europeu. E ainda por discordarem de Teixeira Pascoaes pelo seu desprezo ao progresso técnico, pelo ato de subestimar a interferência dos fatores econômicos nos rumos dos país, pelo seu temperamento fantasista, impulsivo, inconsistente, farão a primeira dissidência que terá como órgão a revista Seara Nova.
Em termos literários, nas colunas de A Águia os poetas definem-se por um neo-romantismo espiritualista e lusitanizante que se compraz em evocar tradições e em cantar a terra portuguesa. São poetas intuitivos, expansivos, exclamativos, inclinados à oratória; oscilam entre o historicismo e o popularismo; dos românticos e simbolistas herdam o gosto da paisagem crepuscular e outoniça, confundida com estados da alma saudosos. Exprimem uma religiosidade vagamente panteísta através da visão animista da Natureza. Presença de bucolismo, folclorismo, certo alor sentimental.
À MINHA MUSA
Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.
Perfil de Luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.
Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparição divina da Saudade…
Ó Eva, toda flor e deslumbrada!
Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.
À Minha Musa é uma dedicatória em forma de soneto, do longo poema Senhora da Noite, a uma amada que o autor não ousa revelar o nome.
Este poema foi construído, quase que totalmente, por paradoxos e antíteses. No começo, o poeta já revela que o seu referente ( a amada anônima) é simultaneamente a senhora da manhã vitoriosa e do crepúsculo vencido, ou seja, a amada é dia e noite ao mesmo tempo: um absurdo em termos de signo lingüístico subordinado a lógica, mas plenamente admissível em se tratando da linguagem poética dos apaixonados.
Na 2ª estrofe, o poeta através de um jogo de palavras que revela a sua tendência singular de desmaterializar o real e materializar o espiritual, faz atribuições conflitantes a amada, pois ela é perfil de luz (como se a luz se corporificasse), imagem religiosa(um clichê simbolista) e, ao mesmo tempo, dor e amor, sol e lua, corpo (que é alma) e alma (que é corpo).
Na 3ª estrofe, o poeta funde o sagrado e o profano ao falar que a mulher é, ao mesmo tempo, aparição divina e Eva (um arquétipo do erótico, da tentação diabólica, da queda, do proibido).
Na 4ª estrofe, a amada é fonte de pranto e alegria. O antagonismo persiste porque a amada é celeste e telúrica, o inferno (o sensual) e o paraíso ( a sublimação). E por isso, ela é o beijo rezado e oração beijada.
I
MARÂNUS E ELEONOR
Marânus era o ser que divagava,
Consigo, pelo mundo solitário.
A sua própria alma o alimentava
E dava-lhe a beber das suas lágrimas.
Empecera-lhe a noite. E, desde então,
Rodeado de espantos e de assombros,
Vive numa perpétua inquietação.
Falho de ânimo e pobre de esperança,
Apenas o salvou da negra morte
Esta misteriosa simpatia,
Que, semelhante à tua lira, Orfeu,
As feras enternece e a luz do dia!
Atrai as selvas virgens que murmuram,
Os inertes penedos taciturnos
E as estrelas do céu que nos procuram,
Com seus olhos de eterna claridade.
Por isso, ele ia andando, neste doce
Enlevo da paisagem, neste encanto,
Que paira, magoado sobre as coisas,
Onde, em silêncio, jaz divino canto…
Nos princípios do outono, quando as nuvens
Aparecem nos montes revestidos
De folhinhas doiradas, e, nos vales,
Há frios tons de cinza, humedecidos,
Chegou já tarde, a um sítio, com pinheiros,
Fragas cheias de musgo, tojo bravo,
Que domina dois íngremes outeiros,
Um rio, verdes campos e a montanha.
Ali, parou Marânus. Do infinito,
Uma infinita lágrima descia
E lhe tomava o coração aflito
E perturbado de íntimos receios,
Quando viu, perto dele, uma Figura
Desenhar-se, no escuro do arvoredo,
Em diluídas formas e apagados
Contornos de esplendor e de segredo.
E, atônito e surpreso, olhava, olhava
Aquela milagrosa aparição,
Que, em brumas transcendentes, disfarçava
Seu angélico rosto de mulher.
A lua, que era nova e ia espargindo
Um luminoso e vago encantamento
Nas ermas coisas lívidas, sorrindo,
Mostrou-se, dentre as nuvens, que se abriram.
E Marânus, ao vê-la, mais perfeita,
Banhada em luz, lhe disse, de repente:
“Quem és tu? De onde vens? Não te conheço!
És da terra e da vida? Ou simplesmente
Ilusório fantasma da beleza?
Destas sombras que surgem, ao luar
E a superfície vã da natureza?
Sentimentos aéreos, flutuantes,
Do coração da noite, esparso e oculto?”
No excerto selecionado de Marânus e Eleonor, Marânus é um ser solitário, um eremita por opção, posto que a sua própria alma o alimenta e bebe da própria lágrima, o qual tem como companhia os próprios sentimentos, divagações e tormentos. É um homem inquieto ( “perturbado de íntimos receios”), sem entusiasmo (“falho de ânimo e pobre de esperança”) e temeroso ( “rodeado de espantos e assombros”) mas que consegue distrair-se de suas obsessões através da contemplação à natureza (“por isso, ele ia andando, neste doce enlevo da paisagem”).
Conseguimos perceber o animismo personificante, de que fala Jacinto Prado Coelho, em construções como: “as feras enternece”, “as selvas virgens que murmuram”, “os inertes penedos taciturnos”, “a lua ia espargindo um luminoso e vago encantamento”. O panteísmo encontramos quando o poeta diz que paira um encanto sobre as coisas da natureza e sob elas, silenciosamente, um divino canto. Na construção: “as estrelas do céu que nos procuram, / Com seus olhos de eterna claridade.” contempla intertextualmente o que Cruz e Sousa disse em Só!: “Muito embora as estrelas do Infinito/ Lá de cima me acenem carinhosas / E desça das esferas luminosas / A doce graça de um clarão bendito…”. A associação com o simbolista Cruz e Sousa não é fortuita. O problema é que o Simbolismo de Pascoaes é muito sutil, pois nega o léxico macabro e decadentista, mas conserva uma atmosfera melancólica (“Uma infinita lágrima descia/ E lhe tomava o coração aflito” ou “frios tons de cinza” ou “nas ermas coisas lívidas”), assim como, o léxico diáfano, vago, algo religioso ou místico ” “diluídas formas”, “apagados contornos de esplendor”. “milagrosa aparição”, “brumas transcendentes”, “angélico rosto de mulher”, “luminoso e vago encantamento”, “banhada em luz”, “ilusório fantasma de beleza”, “sentimentos aéreos, flutuantes” ” de uma inegável coloração simbolista.
Paúlismo, Homoerotismo e Metatextualidade em Sá-Carneiro
O texto discute as ocorrências paúlicas, homoeróticas e metatextuais no romance “A Confissão de Lúcio” do poeta português Mário de Sá-Carneiro
PAÚLISMO, HOMOEROTISMO E METATEXTUALIDADE EM SÁ-CARNEIRO:
UM OLHAR SOBRE A CONFISSÃO DE LÚCIO
Charles Odevan Xavier
Há muita semelhança entre a estrofe de Escavação ” Numa ânsia de ter alguma coisa, / Divago por mim mesmo a procurar, / Desço-me todo, em vão, sem nada achar, / E minh’ alma perdida não repousa”, com o excerto do 1º parágrafo do Cap. I de A Confissão de Lúcio: “Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital”. Aqui notamos a personalidade vacilante, indecisa, o temperamento frouxo, sem vigor e o espírito dispersivo de Sá-Carneiro, como revelam os sememas de um de seus personagens: “não sei bem como”, “achei-me”, pois se ele próprio não sabe como foi parar em Paris, quem é que sabe? Um homem incapaz de assumir-se adulto, que vive da mesada do pai e que prefere desperdiçar suas energias físicas e mentais com a boêmia, do que com a faculdade de Direito; ou seja, Sá-Carneiro é um autêntico bon vivant, algo que terá um preço muito caro em sua vida.
Outro momento de A Confissão: ” Acho-me tranqüilo – sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as horas e esgueirar-se em minha face…A morte real – apenas um sonho mais denso…” coincide com o que Sá-Carneiro diz no poema Dispersão: ” Perdi-me dentro de mim, / porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim.” ou ” Não sinto o espaço que encerro / Nem as linhas que projecto: / Se me olho a um espelho, erro – / Não me acho no que projecto” ou ” Desceu-me n’ alma o crepúsculo; / Eu fui alguém que passou. / Serei, mas já não me sou; / Não vivo, durmo o crepúsculo”, entre outros versos, revelam a despersonalização, a inquietação ontológica e elementos paúlicos como a voluntária confusão do subjetivo e do objetivo pela associação de idéias desconexas e paradoxais; assim como, pelo vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma.
PAÚLISMO
O sentido mais predominante em A Confissão de Lúcio é a visão. O autor se vale de parágrafos imensos para descrever os trajes de suas personagens impregnadas de dandismo ( como Gervásio Vilanova) ou para descrever os ambientes festivos de Paris. Em relação a presença do vestiário na diegese, é pertinente dizer que através dele o autor irá creditar não só a classe social e/ou o grau de instrução, mas, principalmente, a suposta preferência sexual da personagem ao nível da estereotipia, v.g. ” Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e seu corpo de linhas quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado…” ( grifo nosso em relação a Gervásio Vila-Nova).
O talento de Sá-Carneiro pode ser notado na riqueza de pormenores inusitados quando descreve o traje de um americana amiga de Gervásio: ” Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita
malha de fios metálicos – mas dos metais mais diversos – a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica.” (grifo nosso pág.30). É de perceber-se a sinestesia do silvando tumultos astrais que nos remete à hiper-sensibilidade alucinada do <> de Rimbaud, um legado simbolista que também se constitui num elemento paúlico.
Também notamos elementos paúlicos no delírio sinestésico: “Inundava-o um perfume denso, arrepiante de êxtases, silvava-o uma brisa misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos amarelos (Grifo nosso pág.30), ou ” essa luz, nós sentíamo-la mais do que víamos (…) Não impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tato” (pág.32), ou “listas úmidas de sons se vaporizavam sutis…”(pág. 33), mostrando percepções muito próximos das relatadas por pacientes psicóticos ou por usuários de drogas alucinógenas como a mescalina, o LSD e o Ecstasy.
HOMOEROTISMO
A Confissão de Lúcio pode ser abordada por diversos aspectos, desde o alardeado mas, voluntariamente velado homoerotismo, até ao caráter metatextual.
Sobre o homoerotismo particular desta obra, percebe-se que ele é permeado por sentimentos de culpa e camadas de estereotipia com fidelidade ao contexto histórico da época. Ao homossexual é vedado o amor, pois ele só poderá amar outro ser do mesmo sexo se travestir-se de mulher. Bem diferente dos gays marombeiros de hoje, um homem não pode amar outro homem enquanto homem, daí a razão dele se desdobrar, alegoricamente, em uma mulher (Marta) e relacionar-se adulteramente com Lúcio – artifício metafórico/ simbólico do autor que acaba comunicando o conflito interior da sua identidade afetiva e sexual através de personagens alter-egos. E Sá-Carneiro tinha com o que se preocupar, pois o homossexualismo era crime na maioria do países europeus de seu tempo. Portanto, seu romance não pode mostrar um relacionamento homossexual transparente, receio do qual o nosso Adolfo Caminha d´ O Bom Crioulo não compartilhou, mas que em compensação lhe rendeu uma série de aborrecimentos. Como esquecer Oscar Wilde, que foi preso e teve bens confiscados por gostar de um rapaz filho de aristocratas? Nem Freud aliviaria a vida dos homossexuais, considerando-os, no mínimo, neuróticos. Mas há uma explicação: todos os clientes homossexuais do pai da psicanálise tinham medo de ser delatados ou presos, comprometendo-se, assim, todo equilíbrio psíquico e emocional.
METATEXTUALIDADE
A narrativa de Sá-Carneiro exibe um aspecto que interessa aos artistas, sobretudo aos escritores, trata-se do metatextual.
No Cap.I, pág.22, Lúcio comenta o modismo do pedante Gervásio, que gosta de uma nova escola literária: o Selvagismo, cuja novidade reside na impressão de seus livros sobre diversos papéis e com tintas de várias cores, numa estrambótica disposição tipográfica. Os poetas e prosadores selvagens traduzem suas emoções unicamente em jogo silábico, por onomatopéias rasgadas, bizarras: criando novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza ou virtude reside justamente em não significar coisa nenhuma.Esta escola era tão inconsistente que só publicou um livro. O autor pode estar falando do Dadaísmo de Tzara.
Lúcio assim define as escultura de Gervásio Vila-Nova: ” As suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça, pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, onde, porém, de quando em quando, por alguns detalhes, se adivinhava um cinzel admirável.” Já esta passagem tanto pode referir-se ao Expressionismo quanto ao Futurismo de Giacomo Balla.
Falando sobre as reuniões artísticas (espécie de saraus) na casa de Ricardo e Marta, Lúcio comenta, amargo e mordaz , a literatura de um amigo de Raul Vilar :”triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original; no fundo apenas falsa e obscena.”
No Cap.II, pág.39, Gervásio fala para Lúcio – “Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de baixo…em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito. Veja se eu já expus alguma vez…só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o …(e citava o nome do russo chefe dos “selvagens”). Ah! Eu abomino a publicidade!…” Esta passagem flagra a visão glamourizada do artista incompreendido, na torre de marfim, isolado dos demais, compartilhada por vários artistas de seu tempo e satiriza a atitude vanguardista de alguns de seus contemporâneos.
BIBLIOGRAFIA
PONTES, Roberto. O jogo de duplos na poesia de Sá-Carneiro.Rio de Janeiro:Pós-Puc/Rio, 1998.
MASCARENHAS, Eduardo.Emoções no divã.São Paulo:Global, sd.
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poesias de Mário de Sá-Carneiro.Lisboa:Atica,1946.
SÁ-CARNEIRO, Mário de. A Confissão de Lúcio.Rio de Janeiro:Ediouro, 1991.
DICIONÁRIO de literatura.Porto:Mário Figueirinhas, 1994.V.4
Mestrando em Literatura pela UFC
O CHOQUE CULTURAL EM O MANDARIM DE EÇA DE QUEIRÓS
Charles Odevan Xavier
O objetivo deste trabalho é analisar a gênese do choque cultural, presente na novela O Mandarim do escritor português Eça de Queirós, o qual, ainda que contaminado pelo socialismo anarquista, não consegue esconder seu espanto e pesar pelo funcionamento da sociedade chinesa do século passado, tempo em que se desenrola a trama da novela citada. Com olhos eurocêntricos, Eça de Queirós constrói uma personagem em 1ª pessoa, Teodoro, funcionário público da classe média e de vida medíocre, provavelmente seu alter ego, a princípio fascinado pelo exotismo e depois horrorizado no contato com a cultura chinesa.
O que está em questão na obra citada é o choque entre a Europa capitalista, republicana(ou monarquista constitucional, na pior das hipóteses) e industrial de Teodoro/Eça de Queirós e a Ásia medieval, imperial e agrária da civilização chinesa, assim como o choque entre o positivismo cientificista e ateu da cultura européia do século passado e a religiosidade supersticiosa e milenarista chinesa. Em termos marxistas: o confronto entre o moderno representado pelo capitalismo e o arcaico representado pelo feudalismo chinês. Enfim, o confronto entre a metrópole/Portugal e a colônia/China.
Não podemos esperar de Eça de Queirós uma visão mais relativizadora da estruturação da sociedade chinesa, pois ainda se vivia no positivismo comtiano-durkeimiano e no evolucionismo darwinista, teorias em moda na época, as quais colocavam a ciência e a lógica tradicionais, sob o ponto de vista do paradigma cartesiano-newtoniano, como norma de conduta para governos e sociedades; ou seja, o que estivesse fora do padrão lógico e científico ocidental seria considerado atrasado, bárbaro e selvagem. A Antropologia da época, produto do colonialismo europeu, estava mais interessada em estudar os povos colonizados para dominá-los e submetê-los ao poderio das metrópoles, posto que era financiada por elas, do que para compreendê-los em suas estruturas. A Antropologia do século passado, feita quase que inteiramente dentro de Bibliotecas e longe do seu objeto de estudo (os povos colonizados), como se vê na escola de Sir James Frazer, ainda não conhecia a pesquisa de campo de escolas posteriores, como o Estruturalismo de Lévi-Strauss e o Funcionalismo de Malinowsky. Entretanto, cabe a nós darmos visibilidade ao ponto de vista metropolitano e colonizador de Eça de Queirós, quando no texto o autor se refere aos chineses como “bárbaros”.
Não é propósito nosso dizer que a sociedade chinesa é melhor ou pior que a sociedade lusitana; isso deixamos para os que gostam de juízo de valor, interessa-nos vê-la sob uma visão funcional, estrutural e relativizante.
Por mais que a burocracia e o sistema de castas chineses representados pelos mandarins nos pareçam injustos e autoritários aos nossos olhos ocidentais de hoje, e mais ainda, aos olhos do Eça de Queirós do século passado, não podemos esquecer que essas estruturas atendiam as demandas específicas daquela sociedade. Do mesmo modo se deu com a nossa legislação, produto do Direito Romano, que atende as nossas demandas, mesmo com limitações. Tanto num como noutro modelo, oriental ou ocidental, haverá sempre deficiências, posto que o homem, seja europeu ou chinês, é um ser imperfeito e mutável, o qual mais cedo ou mais tarde sente necessidades de modificações, à medida que esses modelos não dão conta de certas demandas e necessidades que surgem. E talvez, a revolução chinesa de Mao-Tse-Tung, no século seguinte, tenha sido um sinal inequívoco da necessidade de mudanças, mesmo numa sociedade estática e de valores arraigados como a chinesa.
Cada organização social ou civilização se constitui de uma forma paarticular e específica. O modo de produção material ou intelectual de uma dada sociedade pode ser eficiente e funcional para ela e um desastre para outra. Dessa forma, enquanto na China imperial cada província tinha um mandarim escolhido pelo imperador e que passava seu título para o descendente, na Europa os governadores eram escolhidos pela população mediante o sufrágio e a sucessão deixa de ser necessariamente hereditária.
É revelador saber que a palavra mandarim não é chinesa. Segundo Eça de Queirós, é portuguesa, vem do verbo mandar e através dela vemos o nível de interferência lusitana na cultura chinesa. Será que o caos visto por Teodoro não está diretamente relacionado com a interferência lusitana? Ou seja, não terá sido a partir da relação promíscua entre os colonizadores portugueses e a corte imperial chinesa que surgem as injustiças, o despotismo, a degradação política e econômica da China milenar? Talvez seja nesse choque de culturas, de formas de governo, de troca de interesses que a rica China – que inventou o papel, a fundição do ferro, a pólvora, a bússola, a porcelana, a cerâmica, a seda (e a industrializou), invenções e descobertas que tanto beneficiaram os colonizadores europeus, tenha se atolado na miséria e fome da maioria da população que assalta a caravana do protagonista num vilarejo afastado, fazendo com que a China não consiga mais prover de bens essenciais seus habitantes. Eça de Queirós, como cônsul da Corte portuguesa, não consegue dar-se conta das consequências terríveis desse intercâmbio entre Portugal e China ou da responsabilidade da Corte lusitana na degradação do império chinês. Por outro lado, seria ingênuo supor um mundo após a expansão econômica provocada pelo ciclo de navegações do Renascimento, onde as civilizações pré-colombianas, africanas e asiáticas permanecessem intactas e puras, mesmo depois do contato traumático com o invasor europeu caucasiano. Podemos supor que o que realmente chocou Eça de Queirós na China do século passado, não foi o que ali havia de Chinês, mas o que lá estava pior de Portugal: a criminosa intermediação lusitana nos destinos políticos e econômicos da terra de Confúcio.
Charles Odevan Xavier
Mestrando em Literatura pela UFC.
BIBLIOGRAFIA
MARTINS, Antonio Coimbra. Ensaios Queirosianos. Lisboa:Europa América, 1967.
EÇA DE QUEIROZ, José Maria. Obras de Eça de Queiroz. Porto: Lello & Irmão, sd. V1
TOMAZI, Nelson Dacio. Iniciação à Sociologia. São Paulo:Atual, 1993.
MOTA, Carlos Guilherme e LOPES, Adriana. História e Civilização: o mundo antigo e medieval. São Paulo: Ática, 1995.