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O CONCEITO DE ‘SER SUPREMO’ NOS UMBANDISMOS, NO JUDAÍSMO, NO CRISTIANIMO E NO ISLÃ
Sempre me chamou atenção o modo peculiar em que no cotidiano da sociabilidade religiosa dos terreiros de umbanda aqui do Ceará, a maneira pela qual os fiéis lidam com que entendem ser o chamado ‘ser supremo’.
Nos terreiros que conheci, seja nos assentamentos dos Gongás[1], seja no início da gira, seja na hora da ‘bença’; é o léxico ioruba ‘Oxalá’[2] que comparece equivalendo a noção de ser supremo.
Nas pesquisas que faço desde o ano de 1992 até agora, descobri por exemplo em José Beniste[3] que o Oxalá não é o ser supremo ioruba, mas filho do ser supremo “Olorum”, “Oludumaré’ e ‘Olofim”.
As matrizes retóricas da umbanda provêm dos troncos linguísticos dos povos bantófones da África central e África meridional. E que o mais correto seria dentro deste contexto chamar o ser supremo pelo léxico quicongo ‘nzambi’ equivalentes aos olorum, olodumaré e olofim da Africa ocidental e da chamada ‘iorubalândia’.
Não irei particularmente neste ensaio entrar em detalhes sobre questões pertinentes aos processos de sincretismo e hibridização – para utilizar a terminologia de Nestór Gárcia Canclini – implicadas nestas reinvenções em ‘terras brasilis’ do Oxalufã velho como o Jesus Cristo do catolicismo cristão. Até pelo falto de que as religiões são instituições culturais e como tal abertas a processos de constante reinvenção, ressignificação e até ressemantização.[4]
Tenho uma hipótese de que os umbandistas e parte dos candomblecistas fazem esta mescla entre ser supremo e Oxalá, por que o ser supremo nas matrizes retóricas das culturas tradicionais religiosas originárias africanas é uma entidade sagrada de difícil compreensão prática. Ele/ela geralmente não recebe culto, não é representado em gongás ou pejis, não recebe oferendas. Imagino até pelo fato de que nas línguas destas culturas o ser supremo não tenha desinência de gênero marcado, o que dificulta a aproximação e a reverência. O africano considera-se inferior demais para relacionar-se com entidade tão sublime e infinita. E por isso procura se conectar com os filhos e encarregados dela (os orixás, nkices e voduns) que são mais próximos e tangíveis. O ser supremo não é facilmente antropomorfizado, como ocorre como os orixás já assemelhados a humanoides de gênero masculino, feminino e os estranhos e ambíguos orixás metássexuais.[5] Mas esta questão lexical é uma suposição minha, posto que não sou catedrático em ioruba e nem em quicongo. Diferente do que ocorre nas matrizes retóricas da cultura judaico-cristã, em que o ser supremo comparece com os semas de ‘Deus’, ‘macho’, ‘heterossexual’, ‘velho’, ‘poderoso’, ‘enérgico’, ‘patriacrcal’, ‘provedor’, ‘intervencionista na vida dos filhos’, ‘temperamental’, ‘castigador’ e, por último, ‘ciumento’. Basta ver como o Javista constrói o Deus de Moisés no antigo testamento. Ainda que poucos conheçam o fato de que, mesmo nesta tradição patriarcal semítica[6], o léxico Elohim associado a Deus nas traduções mais bem feitas do hebraico arcaico, queira dizer realmente: “Somos aqueles que seremos”. O que confere um estranho caráter não pessoal ou individual ao “pai de Jesus”, um caráter plural que pouco foi assimilado pelo judeu médio e pelo cristão médio. Só os rabinos falam nisso.[7]
Nestes meandros de tentar capturar o infinito, o ein sof[8], o apeiron, o absoluto, o demiurgo, o Deus, o Altíssimo. O praticante de umbanda pode revelar uma dificuldade de lidar com conceitos e linhagens religiosas tão díspares e até antagônicas: a cultura judaico-cristã masculinista patricêntrica versus as culturas originárias africanas matricêntricas (Molefi Kete Asante). Por que enquanto em cultos menos ocidentalizados e mais africanizados brasileiros como o candomblé queto[9], ambas as matrizes retóricas estão bem separadas e não ocorre o sincretismo. Já na umbanda praticada em Fortaleza, as epistemes cristólatras misturam-se à outras referências não cristãs, como as inúmeras epistemes indígenas e africanas ao lado de iberismos, ciganaria, judiaria (Wilson do Nascimento Barbosa).
Este ensaio não pretende ser corretivo ou retificar práticas que supostamente estariam erradas e/ou confusas. Muito pelo contrário, não cabe ao antropólogo da religião julgar uma dada comunidade religiosa mas a de registrar apenas e tão somente como ela se comporta e no que ela acredita.
Charles Odevan Xavier
Pesquisador e ensaísta.
[1] No universo dos terreiros umbandistas e, talvez do omolokô – [Nisto precisaria confirmar com pesquisa de campo em terreiros de omolokô para saber] – o vocábulo ‘gongá’ é sinônimo de altar. E é um sinal diacrítico particularmente importante para identificar as chamadas ‘macumbas’. Ou seja, altares em que pululam uma série de representações e deidades das diversas linhas de umbanda. No qual, o ser supremo é representado na parte mais superior, geralmente, com a estátua de Jesus Cristo, como a presidir o particularmente interessante ‘organograma’ de divindades do panteão umbandista.
[2] Como na benção típica entre os familiares de santo: “Oxalá lhe abençoe!”.
[3] BENISTE, J. Orun/Aiyê: o encontro de dois mundos, entre o Céu e a Terra – o sistema de relacionamento nagô-ioruba. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2000.
[4] Terminologia de Ismael Pordeus Jr.
[5] Logun edé – orixá filho de Odé Oxossi com Oxum que é alternadamente pescador no rio e ninfa a cada seis meses.
Oxumaré – orixá filho de Nanã Buruku com Oxalufã que é metade cobra e metade arco-íris.
E, por fim, Ossaim, orixá das ervas e herborista, metade anão perneta metade folha.
[6] Semítica refere-se aos povos do oriente médio e no caso bíblico aos hebreus e israelitas.
[7] Conferir a obra do rabino Nilton Bonder.
[8] Termo hebraico presente na cabala que quer dizer o inapreensível referente ao ser supremo no judaísmo rabínico.
[9] Pelo menos o praticado no candomblé queto do Ilè Asé de Omo tife da Iyalorixá Mãe Valéria aqui em Fortaleza.
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