
NORDESTE (DES)FIGURADO
Este texto pretende analisar a Exposição “Nordeste: Fronteiras, fluxos e personas” em cartaz no Centro Cultural Banco do Nordeste de 03 de Fevereiro a 15 de Março de 2005.
A exposição tem curadoria de Luiza Interlenghi, reúne trabalhos em desenho, fotografia, têmpera, objeto, xilogravura, instalação e multimídia e artistas como: Rosana Ricalde, Martinho Patrício, Leonilson, Antonio Dias, Hilal Sami Hilal, Gil Vicente, José Rufino, Grupo Rasura, Nazareno, Euzébio Slocowick, Caetano Dias, Luiz Hermano, Marcone Moreira, Tunga e Transição Listrada.
Para efetuarmos a nossa investigação, nos valemos dos “paratextos” verbais expostos ao lado dos trabalhos apresentados e da breve sinopse acerca da exposição presente no folder “Agenda Cultural” do mês de Fevereiro do corrente ano.
Foi interessante perceber nesta exposição, uma necessidade que os museus e galerias de equipamentos públicos como o Banco do Nordeste têm de explicar ao público as obras de expostos. As instituições (Museu de Arte Contemporânea, Memorial da Cultura Cearense etc.) utilizam uma gama de recursos para, no entender deles, tornar os trabalhos mais “digeríveis” pelo público. Deste modo, temos nossa contemplação e fruição da obra interrompida por monitores chatos que “irão explicar” (sim, é esse o verbo utilizado) a obra contemplada; como se não bastasse, os “paratextos” impressos que esgotam as obras que comentam ao seu lado. Ou seja, o público contribuinte, que financia estes eventos com seus impostos, é burro.
Esta constatação serve de mote para entender a arte contemporânea e a exposição citada propriamente dita.
O mote da exposição, que Luiza Interlenghi fez curadoria, é a ausência de mote da arte contemporânea. Ainda que os prolíficos “paratextos” e sinopses assegurem de uma intenção enunciativa ou de uma unidade discursiva comum aos trabalhos apresentados; o folder fala em “mapeamento do modo como os fluxos culturais questionam limites territoriais e reúne obras de artistas, com passagem pelo Nordeste, que transitam ou se fixaram em diferentes estados: CE, PE, PB, AL, MA, ES, RJ e SP”.
Ou seja, o que se intui de uma varredura é a própria perplexidade do artista contemporâneo, seja nordestino ou não.
Esta perplexidade se traduz pictoricamente em desespero, cinismo e humor. Assim, no vídeo “Quimera” (2004) de Tunga realizado em super 16, temos o lado mais sombrio da exposição; em que imagens desconexas, fragmentadas, desfocadas de gatos “pé-duro” (ou “vira-latas” no dizer do leitor do Sudeste) sem valor, superpostas ou justapostas à imagem de um rosto masculino fazendo a barba, embalados numa trilha-sonora angustiante de ruídos captados em ruas de cidade grande, rosnar de gatos, berimbaus, escola de samba, automóveis, fraseados de teclado psicodélicos etc. Não vemos o homem que faz a barba por inteiro (não há plano americano), o mesmo comparece no vídeo em closes labirínticos, fiapos furtivos e sobreposições de manchas de luz saturada. Tudo a sugerir o sujeito contemporâneo sem corpo, sem identidade, sem propósito, sem utopia, perdido num tumulto de estímulos visuais e sonoros fugazes e poluidores das grandes metrópoles.
Entretanto, eu sei disso porque fiquei até o final dos 16 minutos da projeção, enquanto o público ansioso e impaciente não se permitia a ficar três minutos na sala. O que sinaliza o espectador frívolo da pós-modernidade: superficial e desejante de imagens cada vez mais frenéticas, que na expectativa de consumir o máximo de imagens possíveis acaba sendo consumido por elas, como diria Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo).
Contudo, se a intenção de Tunga é angustiar, o mesmo não ocorre com o vídeo-instalação do grupo “Transição Listrada”; em que vemos monitores de TV colocados sobre escadas-cavaletes, exibindo um vídeo feito pelo grupo que consiste em pequenas seqüências de membros que chegam em diversos muros da cidade com a escada debaixo do braço, abrem-na e sobem nela para ver o que há do outro lado do muro.
À medida que o tempo passa, a mesma “cena” se repete diversas vezes, mudando os “atores” e os “cenários” filmados “ad nauseam”.
O minimalismo permutacional do empreendimento dos rapazes faz lembrar o cinzento “Koyani.qaa.tsi”, que o minimalista Phillip Glass musicou na década de 80, mas o tom é outro: é leve e engraçado, até pela ausência de áudio. Lá pelas tantas percebemos que as escadas do vídeo são as mesmas que sustentam os monitores de TV. Configurando um divertido jogo metonímico auto-referencial.
Assim como os personagens que sobem na escada para ver o que há do outro lado do muro, são interceptados por uma nova seqüência; o espectador de arte contemporânea também não consegue fechar as inúmeras “gestalts” abertas por jornais, revistas e outdoors lidos a esmo no vertiginoso “habitat” urbano.
Da leve esterilidade do vídeo-instalação do “Transição Listrada”, vamos para o vídeo-instalação “Piquenique” do grupo Rasura. Nela um ambiente simula um piquenique no meio do mato. Em cima de uma toalha branca é projetado um recipiente “tupperweare” de comida que vai desaparecendo. A obra pretende evocar “o tradicional encontro de farofeiros”, espécimes que vem desaparecendo com o crescimento urbano e a eventual substituição pelas praças de alimentação dos shoppings.
É das obras apresentadas: a mais explicitamente engajada. Engajamento entendido no sentido das “micropolíticas” do cotidiano de Félix Guatarri e Michel Foucault.
Mário de Andrade (O Baile das quatro artes) diz que o artista tem de ser, antes de tudo, um artesão. Assim, vemos engenho técnico na obra “Sem título” (2004) de Hilal Sami Hilal que pegou uma chapa de cobre trabalhado com verniz e ácido, compondo um delicado e rendilhado arabesco metálico suspenso no ar, a desafiar a lei da gravidade. O efeito icônico é maravilhoso.
Também vale à pena conferir o virtuosismo técnico das minúsculas cadeiras e objetos de prata de Nazareno; assim como, as mandalas gigantes, coloridas e vibrantes de plástico e arame de Luiz Hermano.
A plasticidade folclórica típica do Nordeste é retomada e subvertida nas garrafinhas permutacionais de areia colorida de Rosana Ricalde ou nos penduricalhos armoriais das “Ledas” de Marinho Patrício.
O problema colocado na e pela exposição é, como diz Gil Vicente – “Remontagem da Escultura” (98) ” nanquim sobre papel, o “embaralhamento” discursivo, a arbitrariedade da arte contemporânea e sua crise de representação; cujo interseccionismo plástico ” as monotipias de José Rufino que de longe lembram radiografias de sistemas sanguíneos ou nervosos e de perto sugerem esfinges ” é puro sintoma.
O artista contemporâneo é obrigado a representar, a fazer uma mimese naturalista pelo público comum, presente na exposição, o qual se queixava de nada “entender”. Como se tivesse a obrigação de figurar tudo claramente e sem liquidar a linguagem, quando este mesmo público chega em casa e assiste a uma liquidação da linguagem diária em Programas como Big Brother, Ratinho, sem nada reclamar.São as contradições de nossa época.
O Nordeste “retratado” pela exposição, não é o Nordeste estereotipado e clichê da “Central do Brasil” do Walter Salles embalado para ganhar prêmios em Cannes; mas um Nordeste desfigurado pela mundialização do capital, suas tecnologias da informação e pela dissolução de fronteiras territoriais (globalização).
Charles Odevan Xavier
[email protected]Mestrando em Letras pela UFC.